06 dezembro 2008

Agustina e Manoel de Oliveira por Ana Marques Gastão




«Não será por acaso que Manoel de Oliveira vai beber à criação romanesca de Agustina Bessa-Luís, digamos que de forma algo obsessiva, sendo sete ao todo os filmes em que na ficha técnica a escritora de Sibila surge como autora da obra adaptada ou dos diálogos. Francisca (1981); Vale Abraão (1993); O Convento (1985); Party (1996); Inquietude (1998); O Princípio da Incerteza (2000) e Espelho Mágico (2005) demonstram-no.
E porquê? Talvez porque Agustina seja uma criadora de grandes enredos, que recupera a tradição da grande ficção portuguesa do séc. XIX e, de algum modo, a dimensão camiliana. (...)
Se algo se adapta à rodagem cinematográfica na sua obra é, sem dúvida, a ideia de que a narrativa dir-se-ia apenas um dos eixos do romance de Agustina. Talvez essa marginalidade agrade a Oliveira pela sua não menor tendência divagante, já que a romancista se detém em descrições obsessivas e, por meio das suas personagens, transmite, exemplarmente, uma carga de mistério e de realidade própria da sua cosmogonia.

É esse mesmo mistério, o do ser humano, do nascimento, da morte, de Deus, da natureza - nos elementos mais ínfimos ou grandiosos -, que atrai, decerto, Oliveira, bem como o sentimento da terra enquanto "infinito espiritual". São as figuras que Agustina tão bem desenha, habitadas pela fúria, arrastadas além de si próprias, que ambos os criadores delineiam com a mão firme.

A memória, essa, é a chave da criação. O despertar da natureza humana Oliveira arranca-o aos textos de Agustina, a partir da violência das sensações vindas do interior, na lentidão do movimento, numa certa harmonia trágica em que romancista e cineasta interagem. Mas será no contrato humano que as obras melhor se entrelaçam, no trato do desejo, da cobiça e do amor.

A desordem do pensamento da escritora - reconhecida, aliás, por ela própria -, a sua forma caótica de se estender, torna a "vertigem do incomunicável" em Oliveira ainda mais abissal, pois o aforismo invade os romances em detrimento dos diálogos. Na sua impossibilidade de conclusão, texto e imagem reafirmam-se no silêncio que se ergue como uma catedral e nos faz reflectir sobre o tempo e a eternidade.»
in DN

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