13 novembro 2008

O folhetim do parente pobre


A cultura em Portugal sempre foi vista como coisa de élites, logo como algo excrescente. O Estado, gerido por muitos adeptos dessa visão, sempre teve um papel ambíguo. Por um lado, quis ser europeu (leia-se francês) e criou um ministério para a coisa. Por outro, sempre achou que, àparte entreter uma clientela luxuosa, a cultura não servia para nada. No entanto, de quando em quando, o escândalo cai-lhe no colo e encontra-o de pantufas. O Estado faz de conta que tem dificuldade em descalçar a bota, mas como está de pantufas a retórica sai-he baça e o povo percebe logo que é só fogo de vista.

Fernando Pessoa, como Camões, confunde-se com a pátria. E a pátria, como é tradição, cospe-lhes em cima. Mas quando o assunto money money salta para as parangonas não há bicho careta que não se ponha em bicos de pés a apontar o dedo. O problema é que são dedos de pobre...

A arca, meu deus, a arca... Esse símbolo, esse pedaço heteronímico de Pessoa que oscila entre os 50 e os 100 mil euros (diz a leiloeira). Os símbolos são assim, caros. Ou baratos (depende do lado donde se olha).

Fotografias, manuscritos, correspondência e outros papéis de Fernando Pessoa vão hoje a leilão (21.00, Centro Cultural de Belém) podendo ser comprados por qualquer pessoa. Porém, o comprador chegará ao final da noite sem ter a certeza de que os bens que licitou irão de facto ser seus. Terminada a venda, a leiloeira deverá informar o Estado de todos os bens vendidos, valores envolvidos e identificação dos compradores. E o Estado terá, então, oito dias para exercer o direito de preferência.

O leilão tem sido criticado por vários investigadores. José Barreto, do Instituto de Ciências Sociais, defende que o Estado há muito tinha obrigação legal de inventariar tudo o que estava nas mãos da família e que a leiloeira incorre em ilegalidade ao vender estes materiais sem prévia inventariação. Barreto, que escreveu duas cartas a alertar o ministro da Cultura, acha que os herdeiros de Pessoa "eximiram uma parte importante do espólio ao arrolamento ordenado pelo ministro José Hermano Saraiva". Dado que decorreram 40 anos desde o despacho de Saraiva, a questão tornou-se juridicamente irrelevante. E acresce um detalhe misterioso: é que ninguém sabe onde pára o despacho do então ministro da Educação. A Biblioteca Nacional chegou a pedi-lo ao próprio Saraiva, mas nem este o encontrou.

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