13 abril 2008

João Miguel Fernandes Jorge 2



Veículo Perfeito

Os pardais voam dentro da matriz da Praia
da Vitória. Quando chegou ao largo onde ficava
a casa das tias que foram de Nemésio começou
a contar-me
trouxeram-nos à volta de 70 depois expulsaram
o canarinho da terra foi o triunfo
uma pequena tragédia da nossa insularidade.
Chamam-se serrados estes quintais de pedra
negra os rabos-tortos são aqueles cães e tudo
lhe saía, minúscula chama, de uma forma cantada
estão apanhando a batata descansando um
pouco há tempo para a tourada tempo para a folia.
O gado engorda.


Um ramo de faia naquela tarde de chuva. O
silêncio da baía com o seu barco de guerra
obsoleto, artifício estafado de soberania um
número uma letra F 487
um mundo imaginário il passaggio da vergine a
sposa? Vão registando na linha de terra uma carta
carregada de órgãos genitais. «Aqui
fica o tribunal, segues o muro ao lado do Corpo
Santo, o dezassete, levas as caixinhas
quando faltarem dez minutos tu sais mais cedo.»
Brasileira. Acabou a vender pastéis na
Atanásio «mete a chave bem na pontinha moça
bem na pontinha»
«Quem a fodesse! Parece de S. Miguel» disse um
rapaz ao balcão. Logo fiquei industriado no
horror à grande ilha.
Fio metálico.
Teatrinho de terracota.
Gesso evocando nem sei bem o quê.


Uma casa vincada a preto e rosa
as lojas do império sucediam-se
o carrocel as penas que largou sobre o paiol
sorte de ars combinatoria à
volta do passeio da catedral
convertido coração Dona Violante do Céu chegou à
janela de sacada, preste a tomar assento na
cadeirinha que levaria ao loiro andaluz. Faia
faia de holanda
alfenim de Angra
desceu ao som de estremecida festa
um cordel branco no pulso
coisa antiga, cadente.


Uma outra casa. Recém-pintada de um azul.
Aí viveu no mês de maio do segundo ano do século
o rapaz Pessoa. Na rua da Palha
o 26 tem um barbeiro na porta ao lado. No tempo
distante de sua mãe ouvia odeio o céu o mar
a minha terra o meu sangue o meu futuro o meu presente
o meu passado eu odeio esta coisa sagrada da
pátria incómoda cadeira dourado subterrâneo.

(Terra Nostra, 1992)

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