02 abril 2008

Línguas e culturas


Pela mão da frenesi chega-nos um pouco da voz de Jorge de Sena. Em causa, questões de cultura e do modo como a literatura a reflecte. O pretexto: o acordo ortográfico. Ou a diferença que vai entre o falar das gentes e o discurso elaborado da arte escrita.
Jorge de Sena, poeta imenso, estudioso incansável, romancista audaz, transformava a fúria em arte. Uma amostra: Camões dirige-se aos seus contemporâneos, do livro Metamorfoses (1963)

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

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