15 abril 2008

José Miguel Silva



Adoro essa paixão absurda que tens

por Hitchcock, o ar cansado

com que chegas a casa e dizes:

voltaste a pôr demasiado sal na sopa.

Adoro a impaciência com que me distrais

dos diálogos que travo com o nada,

quando me contas as tuas façanhas

na república do medo. Adoro a tua insónia,

os teus parcos haveres nos domínios

da roupa interior, e o nunca te rires

das minhas piadas. Adoro ver no telemóvel

o teu nome a dançar, a tua sensatez

um pouco aérea, o jeito nervoso

da tua condução. Adoro ler as coisas

que sublinhas nos livros, a destreza

do teu corpo possuído p’la cinética

beleza da música latina – o teu corpo

trabalhado por abruptos desenganos,

quando dança seminu sob o vão da sala,

e me leva, imagina, a pensar, caramba,

que excitante é o mundo.



(24 de Março, 2004)


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