«[...] não é verdade, como escreve Nuno Monteiro, que mesmo no seu apogeu Portugal fosse uma grande potência. Tivemos sempre de jogar com os diferentes poderes e aproveitámos apenas uma janela de oportunidade. Mal apareceram concorrentes mais fortes deixámos de ser uma potência determinante no Oriente. Pensar que podíamos manter o domínio do Índico para lá do século XVI é pensar que tínhamos uma força que nunca tivemos.
Mas passou por cá uma enorme quantidade de riqueza que não criou raízes. Porquê?
Esse período não é a minha especialidade, mas muito provavelmente não criou raízes porque Portugal já era um país pobre, e já então quando se atirava dinheiro para cima de um país pobre ele desaparecia. E éramos um país pobre no sentido em que não possuíamos estruturas para produzir riqueza de forma auto-sustentada. O dinheiro que por cá passava era utilizado pelas elites para comprarem luxos onde eles eram manufacturados: no Norte de Itália, no Norte da Alemanha e nos Países Baixos. Regiões que são ricas hoje como o eram no século passado ou no século XVI. Ou mesmo no século XII. Basta olharmos para as nossas igrejas medievais e para as nossas obras do Renascimento e ver o que se fazia nesses países.
Como explicar a capacidade de outros países europeus que eram pobres, marginais e muito atrasados mas saltaram para o pelotão da frente?
O que a investigação de história económica mais recente nos mostra é que houve quase sempre limitações de recursos e de oportunidades em Portugal. Quando existiam oportunidades, os portugueses sabiam agarrá-las - quanto mais não fosse emigrando. Por outro lado, no momento decisivo do salto em frente no século XIX, Portugal não tinha um conjunto de recursos naturais muito importantes, a começar pela impossibilidade de produzir, a preços competitivos, os alimentos mais procurados. Só tínhamos o vinho, mais nada. Há também outras razões, algumas delas culturais: também não tínhamos gente preparada, gente letrada em quantidade suficiente.
Portugal foi um país que nunca estimulou os homens livres. Pelo contrário, sempre houve uma tendência para ricos e pobres se encostarem ao Estado. Porquê?
Uma explicação para isso tem a ver com a dimensão ultramarina de Portugal, que permitiu que o Estado se soltasse da sociedade. O Estado não necessitava de cobrar impostos nem de estimular o desenvolvimento, pois os proventos não lhe vinham da metrópole mas da pimenta das Índias ou do ouro do Brasil. Isso criou um poder político centrado em Lisboa, transformada quase em cidade-estado onde tudo se passava, à margem de um interior rural e pobre com que ninguém se preocupava. E quem queria pertencer à elite tinha de vir para a Corte. A nossa aristocracia, ao contrário da aristocracia inglesa ou da aristocracia prussiana, não era terratenente, vivia de rendimentos públicos. Houve sempre um Estado maior do que o país e do que a sociedade devido à realidade ultramarina. Quando se perde o Brasil, passamos a ter um Estado que desconfia da sociedade, que acha que ela não se sabe governar. Encontramos essa mentalidade nos liberais, nos republicanos e nos salazaristas. Todos entendem que têm a missão histórica de arrastar a sociedade para o que entendem por bem comum. Lutam os liberais e os republicanos contra uma sociedade que vêem como tradicionalista e reaccionária, lutam os salazaristas contra uma sociedade que vêem como individualista e anárquica.
Todo esse discurso aponta para um momento de corte, como se houvesse um Portugal do Antigo Regime e um Portugal pós-Revolução Liberal. É isso?
Sim, e esta é porventura uma das novidades desta "História de Portugal" para alguns leitores: a grande revolução em Portugal nos últimos 200 anos foi a Revolução Liberal, foi aquela que mudou realmente o mundo político e cortou todas as pontes com o passado.
[...] Há um país antes de 1820, ou mais exactamente antes de 1832-34, e outro depois. Na República não mudam os paradigmas, com o triunfo da Revolução Liberal mudou tudo na relação dos portugueses com o Estado. Como disse Almeida Garret, foi nessa altura que um Portugal Velho acabou e começou um Portugal Novo. Todas as instituições, algumas delas seculares, desapareceram. Até acabou a velha relação das pessoas com a terra, que não correspondia à ideia de propriedade individual e absoluta dos dias de hoje. O mapa dos concelhos é todo alterado, na prática destruiu-se um poder municipal que vinha desde o nascimento do país. É também então que começa realmente a separação de poderes. Mas a "maior revolução social da história portuguesa", como se lhe referiu Alexandre Herculano, também destruiu as condições para um equilíbrio entre o Estado e a sociedade que permitisse a modernização, no contexto de uma sociedade tradicional que vai evoluindo sem destruir.
[...]
O que é que alguém que queira pensar Portugal hoje pode retirar desta História?
Pode perceber que Portugal não começou ontem, que existem condicionantes que vêm do passado, pode até verificar que algumas soluções já foram tentadas no passado, como os programas desenvolvimentistas de obras públicas, e que não deram resultado. Mas a história também é importante para percebermos a nossa inerradicável pluralidade. Não permite um discurso uniformizador sobre "o português"...
Então livros como "O Medo de Existir", de José Gil, não fazem sentido...
Tenho sempre uma enorme dificuldade em compreender as obras que passam por uma antropomorfização de Portugal, como se Portugal estivesse ali ao lado sentado a tomar café. Há dez milhões de portugueses, logo há dez milhões de maneiras diferentes de se ser português. A alternativa a esse discurso é uma História de Portugal que não procura uma explicação filosófica geral. Temos muitas coisas comuns, mas o fado é de Lisboa e o vinho verde tinto é do Norte Litoral. Não tentemos esconder a pluralidade nem substituí-la por uma qualquer leitura secular do velho providencialismo divino.»
Fonte: Y
Mas passou por cá uma enorme quantidade de riqueza que não criou raízes. Porquê?
Esse período não é a minha especialidade, mas muito provavelmente não criou raízes porque Portugal já era um país pobre, e já então quando se atirava dinheiro para cima de um país pobre ele desaparecia. E éramos um país pobre no sentido em que não possuíamos estruturas para produzir riqueza de forma auto-sustentada. O dinheiro que por cá passava era utilizado pelas elites para comprarem luxos onde eles eram manufacturados: no Norte de Itália, no Norte da Alemanha e nos Países Baixos. Regiões que são ricas hoje como o eram no século passado ou no século XVI. Ou mesmo no século XII. Basta olharmos para as nossas igrejas medievais e para as nossas obras do Renascimento e ver o que se fazia nesses países.
Como explicar a capacidade de outros países europeus que eram pobres, marginais e muito atrasados mas saltaram para o pelotão da frente?
O que a investigação de história económica mais recente nos mostra é que houve quase sempre limitações de recursos e de oportunidades em Portugal. Quando existiam oportunidades, os portugueses sabiam agarrá-las - quanto mais não fosse emigrando. Por outro lado, no momento decisivo do salto em frente no século XIX, Portugal não tinha um conjunto de recursos naturais muito importantes, a começar pela impossibilidade de produzir, a preços competitivos, os alimentos mais procurados. Só tínhamos o vinho, mais nada. Há também outras razões, algumas delas culturais: também não tínhamos gente preparada, gente letrada em quantidade suficiente.
Portugal foi um país que nunca estimulou os homens livres. Pelo contrário, sempre houve uma tendência para ricos e pobres se encostarem ao Estado. Porquê?
Uma explicação para isso tem a ver com a dimensão ultramarina de Portugal, que permitiu que o Estado se soltasse da sociedade. O Estado não necessitava de cobrar impostos nem de estimular o desenvolvimento, pois os proventos não lhe vinham da metrópole mas da pimenta das Índias ou do ouro do Brasil. Isso criou um poder político centrado em Lisboa, transformada quase em cidade-estado onde tudo se passava, à margem de um interior rural e pobre com que ninguém se preocupava. E quem queria pertencer à elite tinha de vir para a Corte. A nossa aristocracia, ao contrário da aristocracia inglesa ou da aristocracia prussiana, não era terratenente, vivia de rendimentos públicos. Houve sempre um Estado maior do que o país e do que a sociedade devido à realidade ultramarina. Quando se perde o Brasil, passamos a ter um Estado que desconfia da sociedade, que acha que ela não se sabe governar. Encontramos essa mentalidade nos liberais, nos republicanos e nos salazaristas. Todos entendem que têm a missão histórica de arrastar a sociedade para o que entendem por bem comum. Lutam os liberais e os republicanos contra uma sociedade que vêem como tradicionalista e reaccionária, lutam os salazaristas contra uma sociedade que vêem como individualista e anárquica.
Todo esse discurso aponta para um momento de corte, como se houvesse um Portugal do Antigo Regime e um Portugal pós-Revolução Liberal. É isso?
Sim, e esta é porventura uma das novidades desta "História de Portugal" para alguns leitores: a grande revolução em Portugal nos últimos 200 anos foi a Revolução Liberal, foi aquela que mudou realmente o mundo político e cortou todas as pontes com o passado.
[...] Há um país antes de 1820, ou mais exactamente antes de 1832-34, e outro depois. Na República não mudam os paradigmas, com o triunfo da Revolução Liberal mudou tudo na relação dos portugueses com o Estado. Como disse Almeida Garret, foi nessa altura que um Portugal Velho acabou e começou um Portugal Novo. Todas as instituições, algumas delas seculares, desapareceram. Até acabou a velha relação das pessoas com a terra, que não correspondia à ideia de propriedade individual e absoluta dos dias de hoje. O mapa dos concelhos é todo alterado, na prática destruiu-se um poder municipal que vinha desde o nascimento do país. É também então que começa realmente a separação de poderes. Mas a "maior revolução social da história portuguesa", como se lhe referiu Alexandre Herculano, também destruiu as condições para um equilíbrio entre o Estado e a sociedade que permitisse a modernização, no contexto de uma sociedade tradicional que vai evoluindo sem destruir.
[...]
O que é que alguém que queira pensar Portugal hoje pode retirar desta História?
Pode perceber que Portugal não começou ontem, que existem condicionantes que vêm do passado, pode até verificar que algumas soluções já foram tentadas no passado, como os programas desenvolvimentistas de obras públicas, e que não deram resultado. Mas a história também é importante para percebermos a nossa inerradicável pluralidade. Não permite um discurso uniformizador sobre "o português"...
Então livros como "O Medo de Existir", de José Gil, não fazem sentido...
Tenho sempre uma enorme dificuldade em compreender as obras que passam por uma antropomorfização de Portugal, como se Portugal estivesse ali ao lado sentado a tomar café. Há dez milhões de portugueses, logo há dez milhões de maneiras diferentes de se ser português. A alternativa a esse discurso é uma História de Portugal que não procura uma explicação filosófica geral. Temos muitas coisas comuns, mas o fado é de Lisboa e o vinho verde tinto é do Norte Litoral. Não tentemos esconder a pluralidade nem substituí-la por uma qualquer leitura secular do velho providencialismo divino.»
Fonte: Y