Nas traseiras dos prédios
Noite de abril. Ouvem-se as gaivotas
nas traseiras desses prédios com varandas
forradas a marquises. Chove e a roupa
nas cordas, tapada com plásticos, dá-lhes
um ar de fotografia surrealista.
Jantam, as pessoas. Algumas, antes ou
depois, fazem da janela o lugar do
fumo. Quase todas às escuras, como
quem tolera pequenos prazeres, logo
que discretos. E que barulho o das pingas
grossas que vêm dos andares de cima.
Alguém abre uma janela e sacode
a toalha, as migalhas, esses restos
de convívio. Há alguns anos eram
menos velhos e andavam na rua
a festejar o fim de uma rotina.
Os filhos estão longe, com ou sem família.
Já donos, proprietários de tanto
conforto com mesa farta e problemas
de coluna. Nas traseiras destes prédios
antigos está escuro, muito escuro,
e nas cozinhas demasiado pequenas
o frio é menor com humor e notícias.
Passaram as ilusões, mesmo as das
revistas hardcore compradas às escondidas.
Agora, com o afecto sempre na reserva,
pensam nas muitas maneiras de morrer.
Chove e, furtivamente, com o som
de fundo dos concursos e doutras histórias
televisivas, abril volta a ser o
mais cruel dos meses e a alegria
parece reduzir-se a um cigarro que
se partilha em silêncio com os vizinhos.
in Dezanove maneiras de fazer a mesma pergunta, Teatro de Vila Real, 2007, pp. 20-21
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