17 fevereiro 2010

Jorge de Sena

Martyrs of today

Como duram pouco
hoje
os mártires.
Espancados, torturados, perseguidos,
assassinados a tiro ou a sorrisos,
os nomes deles povoam as memórias
dos mártires seguintes
nada mais.
E as faces deles perpassam
em jornais, na TV, rapidamente
para que os perseguidores
arrotando
peidando-se
palitando os dentes
na penumbra solitária da salinha
possam esquecê-los
depressa.
Além disso,
os mártires de hoje
não são sequer pessoas respeitáveis;
promíscuos, pederastas, dominó
para os dois lados, bêbados, ou viciados em drogas,
cabeludos, piolhosos, mal-cheirosos,
ainda por cima, às vezes,
trabalhadores honestos e pais de família.
Que mundo pode vir de tamanha degradação?
O perseguidor - políticos, militares, polícias,
velhas solteiras, todos
os que velam pela limpeza dos jardins,
dos esgotos, das cadeias, dos cemitérios -
interroga-se com indignação
(e adormecem sonhando com um
jogo de espelhos que lhes per-
mita ao menos contemplar
uma vez, antes de morrerem,
o próprio cu).
Como duram pouco
hoje
os mártires.

May, 13/1969

[in Visão Perpétua, Edições 70, 1989, págs. 102-3]

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