Era uma vez... Laureano Barros (1921-2008). Planeava tudo. Era organizado, previdente e perfeccionista. Inflexível com a verdade, a liberdade, a independência, o rigor e a pontualidade, exigia-os de si e dos outros. Tinha, portanto, poucos amigos.
Esta é a história de um leitor, tal como vem aqui. Um luxo dominical.
Foi quando foi viver para o Porto, para frequentar o liceu, que o jovem Laureano Barros começou a comprar livros. Frequentava os alfarrabistas e iniciou uma colecção, tal como fazia com os paliteiros, bengalas, relógios, louças, antiguidades ou alfaias agrícolas. Mas ao contrário de toda a traquitana que sempre gostou de trazer para casa, aos livros ergueu uma fidelidade. Não os vendia, não desistia nem se esquecia deles. Começou a acumulá-los na moradia que o pai lhe comprou para se instalar na cidade, na Foz, continuou a ampliar a colecção enquanto viveu nessa casa com a primeira mulher, Leonor, e depois quando se divorciou dela e das seguintes. De cada vez que se separava da mulher com quem vivia (e foram mais mulheres do que os três casamentos), deixava-lhe tudo: a casa, os móveis, as antiguidades. Mas levava consigo a biblioteca. Eram livros de Matemática, de Filosofia, de Botânica, mas acima de tudo de Literatura Portuguesa, e, cada vez mais, volumes curiosos e raros, obras pouco conhecidas, primeiras edições. Por alguns autores tornou-se obcecado e comprava tudo. Depois estendeu a obsessão a todos os escritores. Comprava e lia, várias vezes, os livros de Camilo, Eça, Pessoa, Torga. Sempre teve insónias, e passava-as a ler. Dono de uma memória prodigiosa, sabia páginas e páginas de cor. Perdia horas a arrumar os livros, a manuseá-los, a acariciá-los.
Para ele, eram um salvo-conduto contra a efemeridade de tudo o resto. E também contra a desilusão, como se nada, além dos livros, estivesse à altura dos padrões de excelência que estabeleceu. Do grau de pureza que cedo definiu para a sua vida.
Tendo concluído a licenciatura em Matemática com alta classificação, Laureano foi logo convidado, com 21 anos, para assistente de Rui Luís Gomes, um dos professores mais prestigiados da Faculdade de Ciências do Porto. A bela colega Leonor Moreira obtivera, no secundário, a segunda melhor classificação a Matemática (19) e ele (que teve 20) casou com ela, quando eram ambos estudantes no curso de Matemática da Faculdade de Ciências. Teriam três filhos: Carlos, Rui e Margarida, futuros médico, arquitecto e professora de Matemática.
Mas Rui Luís Gomes era um antifascista incorrigível. Em 1947, a seguir a vários episódios pouco felizes com a PIDE, foi expulso da faculdade, juntamente com outros dois matemáticos, José Morgado e, claro, o recto e incorruptível Laureano Barros, após terem enviado ao Governo uma carta protestando contra a prisão de uma aluna.
Desempregado, Laureano, então com 26 anos, montou uma sala de explicações, em frente ao mercado do Bolhão. Durante mais de 20 anos, viveu disso e pouco mais. Os rendimentos das propriedades familiares de Ponte da Barca, quando chegavam, convertiam-se imediatamente nalguma edição rara de Camilo ou Eça. O mesmo acontecia com as poucas remessas de Angola, onde o pai entretanto se estabelecera e constituíra outra família. Qualquer dinheiro extra era aplicado em extravagâncias bibliófilas, que incluíam, por exemplo, contratar um estudante para lhe catalogar a biblioteca.
Foi o primeiro emprego de Alexandre Outeiro. Laureano Barros pagava ao jovem de Ponte da Barca a estadia numa pensão, mais um salário simbólico, para ele passar os dias a fazer fichas dos livros no T2 que, depois de se divorciar pela segunda vez, arrendara na Rua de Sá da Bandeira. Alexandre cumpria o seu horário de trabalho sozinho no apartamento, mas por volta do meio-dia recebia um telefonema de Laureano convidando-o para o almoço num restaurante, onde passaria a refeição a falar-lhe de livros, cultura e aventuras.
Alexandre ficou a saber, maravilhado, como Laureano, que nunca foi comunista, deu guarida, na casa da Foz, ao militante comunista na clandestinidade Rogério de Carvalho, ou como se encontrou, a meio da noite, num pinhal em Vila do Conde, com a linda militante clandestina do PC Cândida Ventura, que ele não conhecia, para lhe passar uma pasta com documentos secretos. Ou ainda como numa aldeia chamada S. Martinho da Anta havia um velho olmo negro, descrito por Miguel Torga...
Nesta altura já Laureano e Alexandre eram amigos, e davam passeios de vários dias pelo Norte do país, a convite de Laureano, que pagava comidas e dormidas, mas no carro de Alexandre, porque o outro nunca teve carta de condução. Mesmo assim, Alexandre sabia que tinha de chegar ao encontro com o amigo à hora exacta que haviam marcado. Se se atrasasse um minuto, Laureano era capaz de, zangado, ir sem abrir a boca do Porto a Braga. "Ele exagerava", admite Alexandre Outeiro, que é hoje director de uma delegação da Caixa Geral de Depósitos em Gaia. "E sabia que exagerava. Mas era assim. Um homem de um rigor extremo, em tudo o que fazia."
Depois do 25 de Abril de 1974, Rui Gomes da Silva regressou do exílio no Brasil para ser nomeado reitor da Universidade do Porto. A primeira coisa que fez foi convidar Laureano para dar aulas na Faculdade de Ciências. Relutante, ele aceitou, mas, por discordar dos arbitrários saneamentos de professores, demitiu-se meses depois. Ainda voltou às explicações e leccionou num colégio, mas não se adaptou à balbúrdia da época e, após a morte do irmão, Joaquim, em 1976, mudou-se definitivamente para Ponte da Barca. Ia no terceiro casamento, com a professora de Francês Maria José Caleijo, que continuou a viver no apartamento de Sá da Bandeira. Os livros, esses, viajaram com Laureano. Agora, que herdara a casa grande da família, tinha espaço para eles.
Primeiras edições de Fernão Mendes Pinto, Camões, Vieira, Verney, Eça, Pessoa, Antero ou António Nobre, obras juvenis de Guerra Junqueiro, Torga ou José Gomes Ferreira, edições raras de poetas quinhentistas de Ponte da Barca - a biblioteca começou a crescer em majestade, a tornar-se maior do que si própria, misteriosa e imortal, exigindo reverência e devoção. Laureano foi ficando solitário. Ninguém sabe ao certo porquê.
Laureano Alves, primo de Laureano Barros, acha que ele se tornou um homem desiludido. "Passava muito tempo sozinho, embora adorasse conversar." O comportamento dos outros entristecia-o. Principalmente o dos mais comprometidos com o mundo. Por isso foi cortando elos. Recusou tudo o que lhe ofereceram. Foi convidado para professor catedrático da Faculdade de Ciências, como se tivesse leccionado durante todo o tempo desde a expulsão, em 1947. Não achou justo. Aceitou o cargo de director da Escola Secundária de Ponte da Barca, mas por pouco tempo. Segundo uma investigação que instaurou, descobriu serem falsos os atestados médicos que uma professora apresentava para faltar às aulas. Como ela não foi demitida, alegadamente por ter amizades no Ministério da Educação, Laureano pediu a reforma. Mais uma vez, recusou que lhe fosse contado o tempo de serviço desde a sua expulsão da Função Pública, como tinha direito, pelo que ficou com uma pensão miserável.
"Para ele, tudo tinha de ser perfeito", explica o primo.
Não facilitava. Essa era provavelmente a razão por que, sendo um amante da literatura, não escrevia. "O que fizesse teria de ser perfeito. Até uma carta, demorava semanas a escrevê-la. Esse perfeccionismo paralisava-o. E, no entanto, escrevia muito bem." Também terá sido por causa do perfeccionsmo e obsessão pela verdade que não conseguiu manter nenhum casamento, explica um amigo. Não suportava situações menos que perfeitas, e não conseguia mentir: de cada vez que tinha uma infidelidade, contava logo, o que acabava por levar à separação. Mas continuou amigo de todas as ex-mulheres.
A última, Maria José Caleijo, foi companheira até à sua morte, durante 45 anos, apesar de tudo. A certa altura, por imperativos de coerência, divorciaram-se, embora tivessem continuado juntos.
Laureano isolou-se em Ponte da Barca, onde passaria os últimos 30 anos de vida. Fugia das pessoas, e ao mesmo tempo procurava-as. Os outros surgiam-lhe como entidades algo imateriais e o encontro com eles não raro o fazia sentir-se perdido.
Para não se desiludir, preferia por vezes manter à distância aqueles de quem gostava, ignorando a crueldade da atitude. Quando Margarida, a filha, regressou de Inglaterra, onde, muito jovem, fora fazer o doutoramento em Matemática, Laureano fez tudo para que ela não o fosse visitar. Tinha medo que ela tivesse voltado muito esquerdista, e que se zangassem à primeira discussão. Fizera tudo, aliás, para que ela não seguisse Matemática, receando que não conseguisse. Margarida empenhou-se em mostrar que ele estava enganado, concluindo a licenciatura com média de 17.
Talvez cultivasse o relacionamento com os que se prestavam a ser amigos imaginários, metáforas de si próprios. Dizem os psicólogos que os coleccionadores compulsivos sofrem de incapacidade de lidar com os outros. Se isso é verdade, os livros, metáforas perfeitas da vida, são a colecção ideal do filantropo solitário.
No entanto, Laureano tornou-se amigo de pessoas que admirava. Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Costa Gomes, que foi seu colega de faculdade. O general era visita regular da Quinta da Fonte da Cova, até quando foi Presidente da República (Laureano chegou a enviar-lhe uma carta criticando-o pelas cedências aos comunistas), e o mesmo acontecia com vários intelectuais e artistas, alguns bem pouco convencionais, como Luís Pacheco ou Eugénio de Andrade. Nestes, o austero e rígido Laureano apreciava a liberdade e a capacidade de surpreender. Mas mais tarde ou mais cedo a tolerância levava à colisão.
Eugénio passava grandes temporadas na quinta. Sentia-se em casa e dava largas às suas muitos próprias jovialidade e loucura. Mas quando a mãe de Laureano morreu, não mostrou grande consternação, explicando simplesmente que não gostava de funerais.
Uma vez, numa festa, Laureano apresentou-lhe uma personalidade de Ponte da Barca, um sujeito baixo e gordo que sorria de deferência para com o poeta. Eugénio apertou-lhe a mão - "Muito prazer!" - mas ao mesmo tempo disse para o lado, alto e bom som: "Isto é um homem ou é um cagalhão?"
Foi de mais. Laureano cortou com ele relações, que só viria a reatar, décadas depois, pouco antes da morte do amigo.
Esta é a história de um leitor, tal como vem aqui. Um luxo dominical.
Foi quando foi viver para o Porto, para frequentar o liceu, que o jovem Laureano Barros começou a comprar livros. Frequentava os alfarrabistas e iniciou uma colecção, tal como fazia com os paliteiros, bengalas, relógios, louças, antiguidades ou alfaias agrícolas. Mas ao contrário de toda a traquitana que sempre gostou de trazer para casa, aos livros ergueu uma fidelidade. Não os vendia, não desistia nem se esquecia deles. Começou a acumulá-los na moradia que o pai lhe comprou para se instalar na cidade, na Foz, continuou a ampliar a colecção enquanto viveu nessa casa com a primeira mulher, Leonor, e depois quando se divorciou dela e das seguintes. De cada vez que se separava da mulher com quem vivia (e foram mais mulheres do que os três casamentos), deixava-lhe tudo: a casa, os móveis, as antiguidades. Mas levava consigo a biblioteca. Eram livros de Matemática, de Filosofia, de Botânica, mas acima de tudo de Literatura Portuguesa, e, cada vez mais, volumes curiosos e raros, obras pouco conhecidas, primeiras edições. Por alguns autores tornou-se obcecado e comprava tudo. Depois estendeu a obsessão a todos os escritores. Comprava e lia, várias vezes, os livros de Camilo, Eça, Pessoa, Torga. Sempre teve insónias, e passava-as a ler. Dono de uma memória prodigiosa, sabia páginas e páginas de cor. Perdia horas a arrumar os livros, a manuseá-los, a acariciá-los.
Para ele, eram um salvo-conduto contra a efemeridade de tudo o resto. E também contra a desilusão, como se nada, além dos livros, estivesse à altura dos padrões de excelência que estabeleceu. Do grau de pureza que cedo definiu para a sua vida.
Tendo concluído a licenciatura em Matemática com alta classificação, Laureano foi logo convidado, com 21 anos, para assistente de Rui Luís Gomes, um dos professores mais prestigiados da Faculdade de Ciências do Porto. A bela colega Leonor Moreira obtivera, no secundário, a segunda melhor classificação a Matemática (19) e ele (que teve 20) casou com ela, quando eram ambos estudantes no curso de Matemática da Faculdade de Ciências. Teriam três filhos: Carlos, Rui e Margarida, futuros médico, arquitecto e professora de Matemática.
Mas Rui Luís Gomes era um antifascista incorrigível. Em 1947, a seguir a vários episódios pouco felizes com a PIDE, foi expulso da faculdade, juntamente com outros dois matemáticos, José Morgado e, claro, o recto e incorruptível Laureano Barros, após terem enviado ao Governo uma carta protestando contra a prisão de uma aluna.
Desempregado, Laureano, então com 26 anos, montou uma sala de explicações, em frente ao mercado do Bolhão. Durante mais de 20 anos, viveu disso e pouco mais. Os rendimentos das propriedades familiares de Ponte da Barca, quando chegavam, convertiam-se imediatamente nalguma edição rara de Camilo ou Eça. O mesmo acontecia com as poucas remessas de Angola, onde o pai entretanto se estabelecera e constituíra outra família. Qualquer dinheiro extra era aplicado em extravagâncias bibliófilas, que incluíam, por exemplo, contratar um estudante para lhe catalogar a biblioteca.
Foi o primeiro emprego de Alexandre Outeiro. Laureano Barros pagava ao jovem de Ponte da Barca a estadia numa pensão, mais um salário simbólico, para ele passar os dias a fazer fichas dos livros no T2 que, depois de se divorciar pela segunda vez, arrendara na Rua de Sá da Bandeira. Alexandre cumpria o seu horário de trabalho sozinho no apartamento, mas por volta do meio-dia recebia um telefonema de Laureano convidando-o para o almoço num restaurante, onde passaria a refeição a falar-lhe de livros, cultura e aventuras.
Alexandre ficou a saber, maravilhado, como Laureano, que nunca foi comunista, deu guarida, na casa da Foz, ao militante comunista na clandestinidade Rogério de Carvalho, ou como se encontrou, a meio da noite, num pinhal em Vila do Conde, com a linda militante clandestina do PC Cândida Ventura, que ele não conhecia, para lhe passar uma pasta com documentos secretos. Ou ainda como numa aldeia chamada S. Martinho da Anta havia um velho olmo negro, descrito por Miguel Torga...
Nesta altura já Laureano e Alexandre eram amigos, e davam passeios de vários dias pelo Norte do país, a convite de Laureano, que pagava comidas e dormidas, mas no carro de Alexandre, porque o outro nunca teve carta de condução. Mesmo assim, Alexandre sabia que tinha de chegar ao encontro com o amigo à hora exacta que haviam marcado. Se se atrasasse um minuto, Laureano era capaz de, zangado, ir sem abrir a boca do Porto a Braga. "Ele exagerava", admite Alexandre Outeiro, que é hoje director de uma delegação da Caixa Geral de Depósitos em Gaia. "E sabia que exagerava. Mas era assim. Um homem de um rigor extremo, em tudo o que fazia."
Depois do 25 de Abril de 1974, Rui Gomes da Silva regressou do exílio no Brasil para ser nomeado reitor da Universidade do Porto. A primeira coisa que fez foi convidar Laureano para dar aulas na Faculdade de Ciências. Relutante, ele aceitou, mas, por discordar dos arbitrários saneamentos de professores, demitiu-se meses depois. Ainda voltou às explicações e leccionou num colégio, mas não se adaptou à balbúrdia da época e, após a morte do irmão, Joaquim, em 1976, mudou-se definitivamente para Ponte da Barca. Ia no terceiro casamento, com a professora de Francês Maria José Caleijo, que continuou a viver no apartamento de Sá da Bandeira. Os livros, esses, viajaram com Laureano. Agora, que herdara a casa grande da família, tinha espaço para eles.
Primeiras edições de Fernão Mendes Pinto, Camões, Vieira, Verney, Eça, Pessoa, Antero ou António Nobre, obras juvenis de Guerra Junqueiro, Torga ou José Gomes Ferreira, edições raras de poetas quinhentistas de Ponte da Barca - a biblioteca começou a crescer em majestade, a tornar-se maior do que si própria, misteriosa e imortal, exigindo reverência e devoção. Laureano foi ficando solitário. Ninguém sabe ao certo porquê.
Laureano Alves, primo de Laureano Barros, acha que ele se tornou um homem desiludido. "Passava muito tempo sozinho, embora adorasse conversar." O comportamento dos outros entristecia-o. Principalmente o dos mais comprometidos com o mundo. Por isso foi cortando elos. Recusou tudo o que lhe ofereceram. Foi convidado para professor catedrático da Faculdade de Ciências, como se tivesse leccionado durante todo o tempo desde a expulsão, em 1947. Não achou justo. Aceitou o cargo de director da Escola Secundária de Ponte da Barca, mas por pouco tempo. Segundo uma investigação que instaurou, descobriu serem falsos os atestados médicos que uma professora apresentava para faltar às aulas. Como ela não foi demitida, alegadamente por ter amizades no Ministério da Educação, Laureano pediu a reforma. Mais uma vez, recusou que lhe fosse contado o tempo de serviço desde a sua expulsão da Função Pública, como tinha direito, pelo que ficou com uma pensão miserável.
"Para ele, tudo tinha de ser perfeito", explica o primo.
Não facilitava. Essa era provavelmente a razão por que, sendo um amante da literatura, não escrevia. "O que fizesse teria de ser perfeito. Até uma carta, demorava semanas a escrevê-la. Esse perfeccionismo paralisava-o. E, no entanto, escrevia muito bem." Também terá sido por causa do perfeccionsmo e obsessão pela verdade que não conseguiu manter nenhum casamento, explica um amigo. Não suportava situações menos que perfeitas, e não conseguia mentir: de cada vez que tinha uma infidelidade, contava logo, o que acabava por levar à separação. Mas continuou amigo de todas as ex-mulheres.
A última, Maria José Caleijo, foi companheira até à sua morte, durante 45 anos, apesar de tudo. A certa altura, por imperativos de coerência, divorciaram-se, embora tivessem continuado juntos.
Laureano isolou-se em Ponte da Barca, onde passaria os últimos 30 anos de vida. Fugia das pessoas, e ao mesmo tempo procurava-as. Os outros surgiam-lhe como entidades algo imateriais e o encontro com eles não raro o fazia sentir-se perdido.
Para não se desiludir, preferia por vezes manter à distância aqueles de quem gostava, ignorando a crueldade da atitude. Quando Margarida, a filha, regressou de Inglaterra, onde, muito jovem, fora fazer o doutoramento em Matemática, Laureano fez tudo para que ela não o fosse visitar. Tinha medo que ela tivesse voltado muito esquerdista, e que se zangassem à primeira discussão. Fizera tudo, aliás, para que ela não seguisse Matemática, receando que não conseguisse. Margarida empenhou-se em mostrar que ele estava enganado, concluindo a licenciatura com média de 17.
Talvez cultivasse o relacionamento com os que se prestavam a ser amigos imaginários, metáforas de si próprios. Dizem os psicólogos que os coleccionadores compulsivos sofrem de incapacidade de lidar com os outros. Se isso é verdade, os livros, metáforas perfeitas da vida, são a colecção ideal do filantropo solitário.
No entanto, Laureano tornou-se amigo de pessoas que admirava. Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Costa Gomes, que foi seu colega de faculdade. O general era visita regular da Quinta da Fonte da Cova, até quando foi Presidente da República (Laureano chegou a enviar-lhe uma carta criticando-o pelas cedências aos comunistas), e o mesmo acontecia com vários intelectuais e artistas, alguns bem pouco convencionais, como Luís Pacheco ou Eugénio de Andrade. Nestes, o austero e rígido Laureano apreciava a liberdade e a capacidade de surpreender. Mas mais tarde ou mais cedo a tolerância levava à colisão.
Eugénio passava grandes temporadas na quinta. Sentia-se em casa e dava largas às suas muitos próprias jovialidade e loucura. Mas quando a mãe de Laureano morreu, não mostrou grande consternação, explicando simplesmente que não gostava de funerais.
Uma vez, numa festa, Laureano apresentou-lhe uma personalidade de Ponte da Barca, um sujeito baixo e gordo que sorria de deferência para com o poeta. Eugénio apertou-lhe a mão - "Muito prazer!" - mas ao mesmo tempo disse para o lado, alto e bom som: "Isto é um homem ou é um cagalhão?"
Foi de mais. Laureano cortou com ele relações, que só viria a reatar, décadas depois, pouco antes da morte do amigo.
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