10 abril 2009

Carlito Azevedo


Um poeta sem papas na língua: ver entrevista de Alexandra Lucas Coelho (Ípsilon), "Para entender o mundo vou ler os poetas novos" e esta ligação.
Deixamos aqui um poema e um excerto dessa entrevista, com a devida vénia a Alexandra Lucas Coelho e a Carlito Azevedo.


POEMA INÉDITO DE CARLITO AZEVEDO

O tubo

Parte 1: Paraíso

Foi quando a luz
voltou e vimos
o rosto da jovem
que se picava junto
à mureta do Aterro,
a camiseta salpicada,
a seringa suja.
“Nenhum poema
é mais difícil
do que sua época”,
você disse
em meu ouvido
sem que eu soubesse
se era a ela que se
referia ou se ao livro
que passava das mãos
para o bolso
da jaqueta.
Distinguimos
lá longe
a Ilha Rasa,
calçamos
os tênis
e seguimos
sem atropelo
sentido enseada.

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Outro dia ouvi um escritor uruguaio a justificar o acto de fumar. Dizia que dos quatro elementos, o nosso corpo é 70 ou 80 por cento de água, a gente pisa na terra, e o ar está por todo o corpo. O fogo é o único elemento que nos repele, é nosso inimigo, e fumar seria o único modo de termos o quarto elemento dentro. Ao fumar você tem o seu próprio fogo e solta fumaça, mantendo a relação. Não recomendo a ninguém que comece a fumar por isso, mas achei muito bom. Não são mais os sacrifícios incas, aztecas de queimar as pessoas com fogo, mas esse fogo quotidiano, comum do cigarro. Porque de certa forma hoje vivemos de relações empobrecidas. Não que antes tenham sido melhores, talvez tenham sido apenas mais assassinas e exageradas, e agora sejam mais medíocres.

É fumador?

Não, nunca fumei.

A relação forte com a imagem também vem de ter querido ser pintor, e isso está na sua poesia desde "As Banhistas" à Vieira da Silva, ao Goya.

Eles são inspiradores, o que eu chamo os "Aliados Substanciais", que é o nome de um livro do René Char só sobre pintores. Quando vejo cadernos com desenhos acho que fica muito mais bonito.

Tem uma poeta francesa que foi ao Brasil e esqueceu a máquina fotográfica e desenhou tudo o que via. Desenhava muito bem. É um dom que sempre invejei. Eu escrevia redacções, poemas, mas tem sempre aquele garoto na escola que sabe desenhar cavalos de forma realista, coisas lindas. Sempre achei que era para aquilo que tinha nascido, mas sem nenhuma habilidade manual.

Você vê um quadro abstracto de Max Ernst, mas aí ele dá um título, "O que as mulheres gritam ao atravessar um rio", e isso é instigador, sempre parece que a partir daí qualquer um pode criar um poema.

Às vezes como professor e director de oficinas literárias eu levo esse título e digo para cada um escrever um poema, e vêm as experiências mais diversas, mais líricas. Parece que a pintura e a música são propiciatórias. Nunca estive no Chile, e tem uma música em que, de cada vez que eu boto, vejo uma rua que tenho a certeza que é no Chile. E o artista plástico, é como se tivesse escolhido o melhor momento que sugira o que aconteceu antes e o que vai acontecer depois. Havia toda uma série de momentos para pintar, mas ele escolheu aquele. Aí, a literatura, que é uma arte temporal, pode-nos dar conta do que veio e virá. Se a Vieira da Silva faz um quadro como "Jogadores de cartas", começamos a imaginar o que pode acontecer depois, o que estão pensando, de onde vieram.

Sempre pensei que eram momentos mágicos, escutar música ou olhar pintura. Mas nunca tive vontade de ser compositor, me parece muito trabalhoso. Para a pintura não tive talento, para a música não tenho paciência.

Que relação tem com outras possibilidades de passar a poesia, como a performance, a videoarte?

Não nasci com essas novas tecnologias.

É um desconforto?

Não, eu adoro. Por exemplo, ainda comprei disco de vinil, depois passei para o CD, mas vejo que agora as pessoas nem compram disco, já baixam as músicas pelo computador, que é uma relação que eu não tenho, a minha é mais artesanal. Mas admiro muitíssimo.

Também já acontece com parte do que faz. O poema "O tubo" só existe online, e eu posso lê-lo como pode alguém em Timor.

Isso é revolucionário e adoro que as novas gerações já dominem isso. Não sei se foi o Caetano que falou que a Internet é uma grande sessão de cartas. No jornal sempre existe aquela secção onde as pessoas vão colocar suas dúvidas, e a Internet é uma sessão mundial de cartas. O que é interessante. Também existe muito ressentimento. No Brasil existe uma série de blogues "Eu odeio". Você pega e coloca tudo o que você odeia: eu odeio a Rede Globo, eu odeio o Roberto Carlos.

Mas há um elemento que eu adoro: digito "poesia peruana contemporânea" e em três segundos tenho uma centena de poetas. Se descobrir um, já é uma descoberta. Mas também não perco muito tempo com o computador, me policio.

Adoro ficção científica e um dos autores que leio é o Stanislaw Lem, o autor de "Solaris". Ele deu uma entrevista a um repórter muito animado com as novas tecnologias que lhe perguntou se estava contente com o facto do mundo estar cumprindo quase tudo o que ele dizia. E ele respondeu que não gostava, não achava o mundo contemporâneo muito interessante. O rapaz falou no computador, na Internet. E o Lem disse: "Eu posso ir a um buscador e escrevo a palavra felicidade, e ele dá-me dois milhões de textos sobre a felicidade. Mas em que é que isso me aproximou da felicidade?" E talvez me tenha afastado, porque vou perder o tempo todo lendo aquilo. Então, eu gosto daquilo, mas é bom também relativizar.

Mantém a mesma relação com os criadores da sua idade? Como é que eles olham para a nova geração? Também dialogam?

Em alguns casos felizmente sim, como o Arnaldo Antunes.

Que é um herói para os novos.

A recepção dele foi exemplar, recebeu-os muito bem, e é visto como um ídolo por eles. Mas boa parte da minha geração, que talvez achasse que a poesia devia terminar neles, recusa-se a ler, ou quando lê acusa. Teve uma reacção muito negativa à chegada dos novos poetas. Toda a revista que aparece entra sempre num sistema de abraços, tapinhas nas costas, parabéns, nenhuma é muito questionada. A "Modo de Usar" teve uma defesa grande de alguns poetas, mas também um ataque dos poetas da minha geração, que é absolutamente incompreensível e eu só posso ler como reacção a algo muito forte. Também fui acusado de abrir muito as portas da "Inimigo Rumor", que já tem 10 anos, a essa poética, convidei-os a editarem a revista, e isso foi tomado como quase uma traição. Foi incrivelmente mal recebido. Vejo isso como sintomático da força dos novos poetas, porque no sistema literário brasileiro quem chega sem incomodar é porque vai repetir o já feito, e todo o mundo fica satisfeito com aquele mínimo logro que já conseguiram: não me incomode que eu não te incomodo, me elogia que eu te elogio, vamos fazer o mesmo. E ninguém sai muito daquela pequena festa nossa. Quando aparece algo que sai fora disso, as reacções são estarnhas. Para mim nada foi melhor que a chegada desses poetas.

Que nomes daria para quem quiser ler o que se está a escrever?

Para usar nomes novos, na área experimental gosto de um poeta como Ricardo Aleixo. Na área mais do verso, do papel, um poeta de Minas - terra do Drummond -, Walter Gam. Se essa expressão poética da indeterminação, criada pela crítica americana Marjorie Perloff faz algums sentido na poesia brasileira, para mim é na poesia do Walter Gam, do informe, como dizia o Bataille. Gosto de Daniela Storto, essa não tem nem livro, é um raro caso de poeta que em vez de estar ansiosa pela estreia preserva o seu ineditismo. Acho que ela só vai querer estrear aos 40 anos, mas faz poemas fabulosos.


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