01 abril 2010

Gil Vicente


De Gil Vicente (1465?-1537?) pouco se sabe. Desconhece-se o local e a data exactos do nascimento e da morte. Alguns documentos dão-no como ourives, além de dramaturgo.
Sabe-se que no dia 8 de Junho de 1502 apresentou um monólogo à rainha D. Maria. Que transcrevemos abaixo.
É provável que tenha nascido em Guimarães, ou algures na Beira, cedo se fixando em Lisboa. Na capital, a sua principal ocupação parece ter sido a de escrever e representar autos nas cortes do rei D. Manuel e do rei D. João III.
É considerado o pai do teatro português.
De 1502 a 1536, Gil Vicente produziu mais de quarenta peças de teatro, chegando a publicar em vida algumas delas. Colaborou no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. No entanto, só em 1562 o filho, Luís Vicente, publicou toda a sua obra com o título Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco livros. Da compilação, destacamos as peças mais conhecidas: Auto da Índia (1509), Exortação da Guerra (1513), Quem Tem Farelos? (1515), Auto da Barca do Inferno (1517), Auto da Fama (1521), Farsa de Inês Pereira (1523), Auto da Feira (1528) e Floresta de Enganos (1536).


Ouve-se, fóra de scena, o vozeio dos guardas do paço, e entra logo, vestido de briche e ceifões de pele, manta do Alentejo ao hombro, e cajado de azambujeiro na mão, o


Vaqueiro:

Apre!, que sete impurrões
me ferrarram á entrada,
mas eu dei uma punhada
num de aqueles figurões.
Porém, se de tal soubera,
não viera;
e, vindo, não entraria;
e se entrasse, eu olharia
de maneira
que nenhum me chegaria.
Mas, está feito, está feito;
e, se se fôr a apurar,
já que entrei neste lugar
tudo me sae em proveito.
Té me regala ver coisas
tão formosas,
que se fica parvo a vê-las!
Eu remiro-as, porém ellas,
de lustrosas,
a nós outros são danosas.

«Fala á Rainha»

Meu caminho não errou?
Deus queira que seja aqui,
que eu já pouco sei de mi,
nem deslindo aonde estou.
Nunca vi cabana tal
em especial
tão notavel de memória:
esta deve ser a glória
principal
do paraiso terreal!

Seja que não seja, embora,
quero dizer ao que venho,
não diga que me detenho
a nossa aldeia já agora.
Por ella vim saber cá
se certo é
que pariu Vossa Nobreza?
Crei' que sim, que Vossa Alteza
tal está
que de isto mesmo dá fé.

Mui alegre e prazenteira,
mui ufana e esclarecida,
mui perfeita e mui luzida,
muito mais que de antes era.
Oh!, que bem tão principal,
universal!
Nunca se viu prazer tal!
Por minha fé--vou saltar!
Eh!, zagal,
diz' lá, diz' lá:--saltei mal?

Quem queres que não rebente
de alegria e gasalhado!
De todos tão desejado,
este príncepe excelente,
oh!, que rei terá de ser!
A meu ver,
deviamos pôr em gritos
a alegria e a esperança,
que até os nossos cabritos
desde hontem, co'a folgança,
não cuidam já de pascer.

E todo o gado retouça,
toda a tristeza se quita;
com esta nova bemdita
todo a mundo se alvoroça.
oh!, que alegria tamanha,
a montanha
e os prados refloriram,
porque agora se cumpriram
cá nesta mesma cabana
todas as glórias de Espanha.

Que grão prazer sentirá
a grão côrte castelhana!
Quão alegre e quão ufana
a vossa mãe não estará,
e, á uma, toda a nação!
Com razão,
que de tal rei procedeu
o mais nobre que nasceu:
seu pendão
não sofre comparação.

Que pai, que filho, e que mãe!
Oh!, que avó, que avós os seus!
E suas tias, tambem!
Bemdito o Senhor dos céus
porque ell' tal familia tem!
Viva o príncepe logrado
que é o bem aparentado!

Se agora vagar tivera
e depressa não viera,
maldito seja eu então
se aqui a conta não dera
de esta sua geração.
Será rei Dom João Terceiro,
o herdeiro
da fama que nos deixaram,
nos tempos em que reinaram,
o Segundo e o Primeiro
e ind'outros que passaram.

Mas ficaram-me lá fóra
uns trinta ou mais companheiros,
pastores, zagaes, porqueiros,
e vou chamá-los agora;
elles trazem p'ra o nascido
esclarecido,
ovos e leite fresquinhos,
e um cento de bolinhos;
mais trouxeram
queijos, mel--o que puderam...

E ora os quero ir chamar,
mas, por via dos puxões,
agarrem os figurões
p'ra gente poder entrar.


Ouve-se ao longe, uma gaita de foles.

«Entram certas figuras de pastores e oferecem ao príncepe os ditos presentes.»

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