30 maio 2009

Fala quem sabe


Excertos da entrevista de José Gil ao Público:

Há sempre na aprendizagem aquilo que se chamava antigamente na filosofia, e hoje também, a intuição. A intuição é fundamental porque se aprende à sua maneira. Não é um dado formal, universal, que se possa definir da mesma maneira para todos.

P - Não se pode comparar, quantificar?

JG - Não. O que se põe agora nos parâmetros e critérios de avaliação, que se multiplicaram, é uma espécie de factores analisados, decompostos, daquilo que era o terreno da intuição. Por exemplo, mede-se a criatividade. Ora a criatividade o que é? O que é a produção do novo? Como é que se inventa? Quais são os processos de invenção?
Como sabemos, na ciência, a invenção está muitas vezes fora da escolaridade, do ensino, das regras. São as pessoas um bocado desviantes que fazem as maiores descobertas e depois tornam-se Nóbeis, etc. Isto tudo é abolido pelo controlo da avaliação. Quer dizer vai-se abolir a singularidade, a capacidade de inovação, porque se integra este terreno da intuição numa aferição da performance, do desempenho, que é quantificável.

(...) como não se pode avaliar isso, as pessoas que vão ser submetidas a essa avaliação vão ser homogeneizadas, o que conduz à morte da singularidade.

P - As utopias políticas do século passado anunciaram um “homem novo”. A avaliação, como a descreve, aponta para um homem com uma postura de subordinação. Qual é o objectivo que está subjacente?

JG - A formação de uma subjectividade adequada às exigências da economia da globalização, da economia que vem aí, cujo eixo principal é o capitalismo, de que nós talvez ainda nem conhecemos as formas. Mas isso parece-me evidente. E o que é mais paradoxal é que nunca se falou tanto em criatividade, em inovação como agora, quando se estão a impor os meios de um controlo para que a inovação, criatividade, desapareçam.

P - Institui-se a avaliação como meio de controlo, como relação de poder?

JG - É uma questão de controlo e uma questão de poder. Isto não vai fazer desaparecer a inovação, não vai fazer desaparecer as grandes descobertas científicas. O que vai fazer é criar um hiato, uma separação cada vez maior. Vai haver uma elite hipercientífica, filosófica não sabe, hiperespecializada, e essa sim poderá inovar.
Para os outros estamos a multiplicar os parâmetros de avaliação, absorvendo essa margem de indeterminação num espaço de controlo cada vez maior. E com isso estamos a acabar precisamente com a experimentação interior, o erro possível, a liberdade interior que é possível e necessária à criação.

(...) É preciso que o professor tenha uma autoridade espontânea. E idealmente não tenha que a exercer. A relação antiga do mestre e discípulo na Renascença, por exemplo, é essa. Não é uma relação de poder.
(...)
Posso dizer, toda a gente pode dizer, que um dos efeitos da politica do Ministério da Educação foi virar todos contra todos. Virou-se os alunos contra os professores.

(...)
P– No seu entender, qual é o objectivo deste modelo de avaliação?

JG - Em Portugal havia uma espada de Damocles sobre o Ministério, todos os Ministérios, que é o dinheiro. Por outro lado, há um problema real de que os sindicatos não falam.
A nossa escola não estava boa. Muitos professores, ou pelo menos uma parte deles, não têm qualificações. Com a avaliação, alegadamente, matavam-se dois coelhos: reduziam-se as despesas, reduzindo o pessoal, e punha-se fora os que não eram bons.
Mas o que é que aconteceu?. Muitos dos que eram bons é que saíram. Saíram porquê? Não aguentam. E o que é que eles não aguentam? Não aguentam não poder ensinar, não aguentam não poder ter uma relação em que precisamente se construa um grupo em que o professor age, em que se aprende ensinando, em que os alunos querem.
Tem que haver avaliação. Não pode é haver a inversão da subordinação da avaliação porque agora se estuda para se ser avaliado. Veja as Novas Oportunidades, para que é que serve?

P- Para fornecer um diploma?

JG- É o chico-espertismo que entrou na escola. Vamos não trabalhar para obter um diploma.

P- No seu livro alega que há como que um objectivo maior. Conjugando as políticas e omodo como o Ministério reagiu à contestação dos professores, está-se perante uma estratégia de domesticação?

JG- Isso parece-me evidente. É um projecto maior, que talvez não seja muito consciente na cabeça dos nossos dirigentes e, em particular, na do primeiro-ministro José Sócrates.
A ideia intuitiva, ele ainda tem intuições, é a de que o autoritarismo é um método económico. Resolvem-se mil coisas. Há essa ideia: funciona ser autoritário. Uma vez vendo que funciona, vamos estender. Os portugueses querem um certo autoritarismo, nós tomos, que estamos desnorteados, perdidos. O autoritarismo é um meio de governo. (...) E como não há quase resposta a este autoritarismo, ele rebate-se, plasma-se, na realidade.

P - Ficámos com uma escola pior?

JG - Arriscamo-nos a isso. A escola já não era boa. A escola precisa de reformas, é necessário pensar uma avaliação, mas para pensar uma avaliação temos primeiro que pensar em conteúdos. A primeira das coisas a fazer é revalorizar os professores, agora. A relação geral dos alunos relativamente ao saber é de rejeição. A ideia do professor como alguém que abre as portas para o mundo acabou ou está em vias de acabar. Isto tem de ser restaurado.
Depois tem que se parar com a avaliação multiplicada a todo o instante. Estamos sempre a comparar-nos. O mal desta avaliação é que ela compara e a competitividade, a rivalidade, que existem numa escola, que são necessárias para a aprendizagem, torna-se inveja.

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