15 dezembro 2009

João Miguel Fernandes Jorge


XIX

Também tenho uma história do meu
pai para contar. Aos nove anos levou-
me a ver um doente. Era
inverno e a casa, meio derruída, ficava
na Tapada. Trazia ainda a húmida presença
das águas do rio. Aos nove anos
o eu funde-se com o presente vivido
com o dentro e o fora. Por isso o Tejo
foi para mim desde essa manhã
a casa da parede larga de adobe, o
quarto escuro sobre um enxergão
mal distingui um corpo
por inteiro reduzido à dor –

«Espera-me lá fora.» Mas fiquei junto à
sombra esboroada da parede. Trouxeram a
luz de um candeeiro
e o rosto não era o esperado com os traços rudes e
nobres de um homem do campo,
a face vivia um tempo feroz e gratuito. Daquele
homem guardo um estranho rumor
que suponho ser idêntico ao do ferido de morte
no chão de um massacre

oiço subir as águas do Tejo nos confins de
pedra; e todo o olhar vazio era, é
o enorme sítio do esquecimento
e toda a sua dor, a eternidade.

[in Mãe-do-Fogo, Relógio d'Água, 2009, pág. 30]

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