14 julho 2009

Aventuras de um revolucionário romântico


Hermínio da Palma Inácio morreu (1922-2009). Era uma lenda. Porque foi um "terrorista". Pelo menos para o Estado Novo. Protagonizou diversos golpes. Foi um dos responsáveis pelo desvio político de um avião, a 10 de Novembro de 1961. Assaltou o Banco de Portugal, na Figueira da Foz, de onde levou cerca de 30 mil contos.
Numa operação concebida por Henrique Galvão e chefiada por Palma Inácio, o voo TAP de 11 de Novembro de 1961 do Super Constellation Mouzinho de Albuquerque de Casablanca para Lisboa foi desviado, com o objectivo de lançar panfletos anti-salazaristas em várias cidades portuguesas. Cerca de 45 m após o início do voo, Hermínio da Palma Inácio, entra no cockpit e aponta um revolver à cabeça do Comandante, explicando que o avião estava a ser assaltado. O objectivo era lançarem sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, 100 000 folhetos, denunciando as eleições para a Assembleia Nacional que se iam realizar 2 dias depois e incitando à revolta contra o regime de Salazar, regressando depois a Tânger onde Palma Inácio e os seus 6 companheiros, deviam obter asilo político. Esta operação planeada por Henrique Galvão tinha o nome de “Operação Vagô”. No Público online recupera-se um artigo de há sete anos (28 de Outubro de 2001) em que se narra o episódio. Transcrevemos:
«Hermínio da Palma Inácio sempre foi louco por aviões. Em 1951 chegara aos EUA, após uma fuga da prisão do Aljube, onde foi parar por ter sabotado os aviões da base de Sintra, operação integrada numa intentona que correu mal. No Massachusetts, tirou o brevet, tornou-se instrutor e voou sobre o país inteiro até ser preso e ir parar ao Brasil, onde trabalhou em empresas ligadas à aviação e de onde seguiu a aventura eleitoral de Humberto Delgado, em 1958.
Pouco depois, é o próprio Delgado a chegar ao Rio de Janeiro. A seguir, em Janeiro de 1961, Henrique Galvão, com Camilo Mortágua, protagoniza o espectacular assalto ao Santa Maria.
Depois de muitas peripécias, o navio acaba por atracar no Brasil, onde deixa Galvão e Camilo.
Em Portugal, a proeza enfurece a Pide, que começa a prender a torto e a direito. Um grupo de operacionais não militares que tinha participado na revolta da Sé, em Março de 1959, achou que era altura de coordenar a acção a partir do estrangeiro, e pediu asilo político na embaixada do Brasil, mal tomou posse na Presidência brasileira um homem que desde sempre mantivera distância em relação ao Governo de Salazar: Eugênio Quadros.
Amândio Silva, Manuel Serra, Raul Miguel Marques, José Paulo da Silva Graça chegaram todos ao Brasil pela mesma altura, com a intenção de lançar a revolução em Portugal sob a liderança de Henrique Galvão e Humberto Delgado.
Mas os dois líderes não se entendiam. Galvão considerava-se o chefe operacional e achava que a Delgado, a quem todos chamavam Sr. Presidente Eleito, devia ficar reservado o papel de líder político. Delgado considerava que, na situação em que estavam, não fazia sentido a distinção, e queria chefiar tudo. Era uma luta por protagonismo mas também por diferentes estratégias de acção, que acabou por levar os dois a uma ruptura formal, numa reunião supostamente conciliadora convocada pêlos operacionais em que Delgado se enfureceu e saiu porta fora.
Os operacionais convocaram outra reunião, sem Delgado nem Galvão, e decidiram organizar eles a sublevação, e concretizá-la, a despeito da luta de galos dos chefes, nem que para isso fosse preciso enganá-los.
Eis o plano, basicamente concebido por Galvão, que deveria ser posto em prática a partir de Marrocos: três operacionais partiriam clandestinamente para Portugal, com a missão de aliciar militares para uma revolta contra o regime.
As hipóteses seriam, ou tomar um quartel a Sul, como o de Beja, a partir do qual a revolução partiria para Norte, com ajuda de países do Norte de África, ou conquistar um quartel a Norte com capacidade de resistir durante meses, para que a revolução germinasse a partir daí.
Quando a insurreição tivesse começado, seria enviado, por código, um sinal verde para Marrocos, onde outro grupo de operacionais desviaria um avião comercial. Com Galvão e Delgado a bordo, o avião aterraria algures nas imediações do foco da revolta, de onde os dois carismáticos líderes oposicionistas encabeçariam a marcha de tomada do poder. O avião deveria ainda lançar sobre todo o país 100 mil panfletos incitando à revolta, que chegaram a estar impressos, com instruções precisas de guerrilha — como confeccionar um cocktail Molotov, como sabotar uma ponto ou os acessos a uma cidade, etc.
A primeira parto do plano foi posta em prática.
Os operacionais, Galvão e Delgado incluídos, começaram, em pequenos grupos, a sair para Marrocos. Raul Miguel Marques, um casapiano com grande habilidade manual, encarregou-se de falsificar os passaportes, que eram válidos apenas para o Brasil. Acrescentou: "Este passaporte também é válido para os seguintes países... e inscreveu a quase totalidade dos estados do mundo. Depois, aproveitando o carimbo de uma empresa ditosamente chamada Consórcio Geral de Portugal, mudou o "órdo" para "ulado" e falsificou a assinatura do cônsul por cima.
Raul, Miguel Serra (que militara na Juventude Católica e passava agora muitas horas a rezar para que a falsificação dos passaportes não fosse descoberta) e Amândio Silva foram os primeiros a partir, primeiro para Paris, depois para Amsterdão, onde Amândio foi "salvar" o operacional Jaime Conde, contacto de Fernando Oneto, um dos líderes da revolta da Sé, que entretanto fora preso. Conde estava num barco no porto holandês, desconhecendo a detenção de Oneto e a consequente iminência da sua própria prisão. Pela calada da noite, Amândio entrou clandestinamente no barco e levou o companheiro para uma embaixada onde pediu asilo político. Só depois rumou a Tânger.
Palma Inácio, Camilo Mortágua, José Paulo da Silva Graça partiram a seguir, com encontro marcado com Galvão em Roma, que não chegou a concretizar-se porque as autoridades italianas nunca tinham "compreendido" o assalto ao Santa Maria. Delgado chegou também a Marrocos, e instalou-se num hotel em Casablanca, para ficar o mais longe possível de Galvão.
Numa derradeira tentativa de sensibilizar os dois líderes para a necessidade de ultrapassarem divergências, Serra, Raul e Amândio alugaram um carro e foram a Casablanca. Era uma operação-relâmpago, ou pelo menos assim a entendia Amândio, que assumiu o volante com viril afoiteza. Ao passar em Alcácer Quibir, não se sabe se por causa do nevoeiro, consta que um beduíno se postou no meio da estrada. Para poupar o autóctone, Amândio guinou para a esquerda e entrou em contramão numa curva, onde vinha outro carro, em sentido contrário. Amândio emendou para a direita, de forma tão resoluta que um pneu rebentou, e em consequência a velha carcaça desceu uma ribanceira, subiu outra ribanceira e acabou estampada contra uma árvore.
O condutor foi levado, com um traumatismo craniano, para a maternidade de Alcácer Quibir, onde um médico lhe coseu a cabeça à pressa, esquecendo-se de limpar a terra e outros detritos, e onde ficou internado. Só um mês depois outro médico se decidiu a lancetar-lhe, sem anestesia, a cabeça, entretanto toda infectada, para retirar a terra de lá de dentro. Dias depois, Amândio estava bom, mas não a tempo de ir para Portugal iniciar a revolução, como estava previsto. Decidiu-se que José Paulo da Silva Graça partiria em seu lugar e Amândio passou a integrar a equipa do avião.
José Marcelino, piloto da TAP, então na casa dos 40 anos, era um homem casado que gostava de viver a vida. O pai tinha sido um republicano activo mas ele optara por ignorar a política, dedicando-se ao trabalho, na aviação, e, nas horas livres... às miúdas.



No início dos anos 60, Marcelino era já um profissional tão respeitado na companhia, que o ministro da Guerra da altura, o general Gomes de Araújo, não confiava a mais nenhum piloto a sua mulher e filha. Nas deslocações que as duas faziam frequentemente a Paris, para ir às compras, viajavam sempre nos voos e ao cuidado especial do seu comandante preferido.
Uma noite, Marcelino, na companhia de uma jovem, conduziu o carro até um certo parque, na zona de Cheias, onde, à época, muitos homens e mulheres consumavam, no sigilo tácito dos carros, os seus namoros ilícitos. Marcelino, que já perdera a conta a quantas vezes ali estivera, não tinha o hábito de olhar para quem estava no carro do lado. Mas naquele dia olhou. E... surpresa! Quem, num afã, se recreava pacificamente com uma beldade semipubescente? O ministro da Guerra! Em pânico, Marcelino deu meia-volta, mas não antes de o ministro o ter enxergado. E quando, mais tarde, a legítima esposa de Gomes de Araújo veio a saber do caso deste com a jovem, o ministro convenceu-se de que fora Marcelino, com as suas relações privilegiadas com a senhora de Araújo, o delator. Nada mais falso mas, a partir dessa data, acabaram-se as compras em Paris e Marcelino passou a contar, na sua folha de serviço, com um ódio de morte da parte do ministro da Guerra.
Escaldado com os maus encontros em Cheias, Marcelino arranjou outros estratagemas para namorar secretamente, nomeadamente com a jovem hospedeira da TAP Maria Luísa Infante, por quem entretanto se tomou de amores.



Nos dias 10 e 11 de Novembro de 1961, por exemplo, os voos Lisboa-Tânger-Casablanca-Lisboa deveriam ser efectuados, como acontecera nos últimos meses, por um DC-6 francês da UAT, que a TAP fretava quando não dispunha de aviões suficientes na sua frota. Apesar de o avião ter matricula francesa, era um voo TAP, pelo que a tripulação, que viajaria até Casablanca e aí pernoitaria, para regressar no dia seguinte a Lisboa, era da companhia portuguesa. Pois nesse dia, José Marcelino estava escalado para fazer o voo da TAP Lisboa-Porto, num Super Constellation de última geração, de nome Mouzinho de Albuquerque. Ora Marcelino, que tinha competência para alterar as escalas de serviço, ao ver que Maria Luísa faria o Lisboa-Tânger-Casablanca no DC-6 francês, decidiu, à última hora, mudar tudo: ele, Marcelino, voaria com o Super Constellation para Marrocos, com a tripulação que incluía Maria Luísa, e o DC-6 faria a carreira para o Porto. O objectivo era assistir, com Maria Luísa, a um espectáculo de dança do ventre e dormir com ela, em Casablanca. A hospedeira soube do plano minutos antes da partida, e ficou radiante.
Em Outubro de 1961, Fernando Vasconcelos, com 19 anos, deveria entrar na Universidade do Porto. Isso não chegou a acontecer porque estava a começar a guerra colonial, porque parecia não haver forma de combater a ditadura, e porque, ele e Maria Helena, com quem casara há um mês, decidiram fugir do país.
Compraram um pequeno barco de seis metros com um motor fora-de-borda de 25 cavalos chamado Rumo e, com outros quatro companheiros, numa manhã de São João, enquanto o Porto dormia, fizeram-se ao mar.
Pararam em Cascais, onde entrou outro resistente, que era procurado pela Polícia, depois em Aljezur, e partiram, os sete, para Tânger. Como estava previsto que a viagem duraria quatro dias, levavam combustível ajusta para a travessia, 70 litros de água e latas de conserva. Como instrumentos de navegação levavam uma bússola, um receptor de rádio, porque sabiam que, ao sintonizar uma estação de ondas médias, o sinal era mais nítido quando se dirigiam na sua direcção, e uma edição liceal de um Atlas.
Mas ao segundo dia de viagem foram apanhados por uma tempestade. Desviaram-se da rota, andaram as voltas e quando o vento amainou estavam no alto mar sem combustível. Navegaram à deriva durante sete dias, racionando os mantimentos: dois copos de água e uma almôndega por dia. Já quase tinham perdido a esperança, quando surgiu um petroleiro, que os salvou. O navio, de bandeira liberiana, armador americano e tripulação italiana, meteu-os a bordo e rebocou o barco até Gibraltar. Pediram asilo político, mas a Grã-Bretanha recusou, concedendo-lhes um prazo de 24 horas para consertarem o barco e partirem. No dia seguinte, conseguiram chegar a Tânger, onde lhes foi concedida uma autorização de permanência.
Parte do grupo decidiu aceitar convites para estudar em países socialistas, mas o que Fernando e Maria Helena queriam era combater o regime de Salazar. Contactaram com revolucionários argelinos da FNL e, meses depois, com Henrique Galvão, que chegara a Tânger com os seus operacionais.
Quando Fernando Vasconcelos e Maria Helena Vidal se integraram no grupo de Palma, Amândio e companhia, já Manuel Serra, Raul Miguel Marques e José Paulo da Silva Graça tinham partido para Portugal, para atear a revolução. Saíram às 4h00 da manhã de Tânger, apanharam o barco de Ceuta para Algeciras, chegaram a Sevilha, de táxi colectivo, ao cair da noite. Dormiram numa pensão e pelas 8h00 da manha apanharam um comboio para Cáceres. Foi aí que tiveram pela primeira vez a suspeita de que estavam a ser seguidos. A polícia pediu-lhes os passaportes umas dez vezes durante a viagem. Apearam-se em Cáceres, esfomeados, entraram num restaurante, e estavam a comer a sopa quando entraram seis agentes da Polícia política espanhola. "Passaportes! Os senhores estão presos!".
Quando, na esquadra, foram interrogados, um de cada vez, José Paulo contou a história que tinham combinado: vinha, com aqueles amigos, visitar o comandante da Polícia Joaquin Cabrera, grande amigo do seu sogro, Rolão Preto... A história tinha um fundo de verdade.
José Paulo era casado com uma rapariga chamada Rita Rolão Preto, filha do famoso Rolão Preto, um líder do movimento fascista dos Camisas Azuis que nos anos 30 fora expulso para Espanha e se fixara na região de Cáceres. O velho Rolão Preto fizera amizade com o Comandante da Polícia secreta de Cáceres, o tal Joaquin Cabrera, que depois o ajudara muitas vezes a safar contrabandistas amigos que eram presos na fronteira. Ora no casamento de José Paulo com Rita, realizado na quinta de Roláo Preto, esteve presente como convidado nada menos que D. Joaquin, que por sua vez convidou o noivo para uma tourada, do lado de lá da fronteira...
"Telefone por favor ao D. Joaquin Cabrera", disse José Paulo aos boquiabertos polidas, "diga-lhe que está aqui o marido da filha do dr.
Rolão Preto, que o quer visitar . Os polícias obedeceram e, poucas horas depois, os três revolucionários dormiam num hotel aconselhado pela "secreta" espanhola, pela manha, José Paulo fez uma visita de cortesia ao circunspecto Cabrera, que, apesar de estar seguramente informado dos propósitos dos revolucionários, por respeito ao velho amigo lhes deu todas as instruções de como chegar à fronteira por Villanueva del Fresno.
Ainda receando ser esperados pela Pide à chegada, os três agitadores optaram por ir primeiro a Salamanca, vaguear de autocarro e de táxi pela região, e entrar a pé em Portugal. Para quem os visse naquela altura, sujos e escanzelados, devia ser imensamente triste — e significativo — pensar que a democracia e a liberdade de todo um povo dependiam daquele trio.
Chegados ao país, dividiram-se, para cumprir a sua missão: Manuel Serra foi para Caldas da Rainha, José Paulo para Viseu, e depois para o Porto, Raul para Lisboa. Duas semanas depois, como combinado, encontraram-se os três em Lisboa para darem conta dos sucessos de cada um no incitamento dos militares à revolta.
Decepção. Não tinham conseguido nada. Nem um só elemento das Forças Armadas se comovera com os seus argumentos. Ignoraram-nos.
Chamaram-lhes malucos. Dos três, só Manuel Serra se obstinou em não desistir. Separou-se dos outros e continuou sozinho, até lograr, já no fim do ano, organizar a revolta de Beja. Quarenta anos mais tarde, José Paulo diria, num suspiro: "Não gosto muito de falar nestas coisas. Tenho a sensação de que falhámos sempre".
A Tânger chegou a mensagem, em código: não há condições para a revolução neste momento.
Talvez daqui a três ou quatro meses. Abortar a operação.
A vida em Tânger não era fácil para o grupo de operacionais. Tinham ido para Marrocos com os escassos fundos angariados junto de alguns anti-fascistas portugueses exilados no Brasil.
Amândio, com a capacidade de organização que lhe reconheciam, era quem geria os recursos. A rotina do grupo, Galvão incluído, era austera: de manhã, tomavam um café; às 4h00 da tarde, ingeriam a única refeição do dia, sopa e um prato, numa tasca espanhola que fazia um preço especial; à noite, bebiam um copo de leite. Tudo isto acompanhado de muitos exercícios físicos, para se manterem em forma até ao momento da grande acção.
Perante a notícia de que a revolução não era possível no momento, que fazer? Não tinham dinheiro para se manterem em Tânger mais alguns meses, à espera da altura propícia. Aliás, nem tinham dinheiro para o bilhete de regresso ao Brasil. Foi principalmente esta circunstância, e a falta de coragem para dizerem aos seus financiadores que não tinham feito nada, que determinou a decisão que foi tomada. Numa reunião de emergência, em que nem todos estiveram de acordo, optou-se por manter a operação do avião. Não para apoiar a revolução em curso, mas simplesmente como acção de propaganda, uma espécie de golpe de charme da oposição não-comunista, tanto mais que se estava nas vésperas de eleições em Portugal. Desviariam o avião Casablanca-Lisboa, que fariam regressar a Marrocos, onde seriam certamente presos e expulsos do país, o que resolveria o problema do bilhete de regresso.
A operação, que baptizaram como "Vago", começou. Viajaram durante a noite, em dois carros, chegaram ao início da manhã a Casablanca.
Encontraram-se num café, onde tomaram o pequeno-almoço, Palma sempre a enxotar os teimosos engraxadores, para não darem com o revólver 32 que levava na peúga.
Chegaram ao aeroporto, para o voo das 9hl5. Despediram-se de Galvão, que perguntou: "O Palma, a que horas é que achas que estás de regresso, para eu avisar as autoridades marroquinas?" "Às 10 para o meio-dia estamos aqui. Certo como um relógio", respondeu Palma.
Quando avistaram o avião na pista, primeiro susto: não era o DC-6 francês, como julgavam, mas um Super-Constellation da TAP. Pensaram: Pronto, a Pide já nos descobriu, mandaram um avião cheio de polícias. Discutiram por minutos se continuavam. Avançaram. No check-in, entregaram as sete malas, cheias com os 100 mil novos panfletos que mandaram imprimir.



Viajavam 19 passageiros no avião, dois deles, os únicos portugueses, em primeira classe, que ficava na parte de trás. Amândio, suspeitando tratar-se de pides, disse logo a João Martins, ao ouvido: "Tu ficas aqui atrás. Aqueles dois não se levantam durante todo o voo, nem para mijar! Entendido?" Quando o avião descolou, os operacionais, que se sentavam em lugares separados, levantaram-se, um a um, para ir buscar a sua pistola. Maria Helena, que já retirara as armas da cinta, entregou-as subrepticiamente, com gestos de prestidigitadora. Mas foi apenas quando a aeronave saiu das águas territoriais marroquinas que começou a acção propriamente dita.
Palma e Camilo irromperam pelo cockpit. O copiloto estava nos comandos e o comandante, José Marcelino, sentava-se na pequena divisão contígua. Palma apontou-lhe o "32": "Comandante, somos um grupo revolucionário patriótico e estamos a fazer uma operação política, contra o regime ditatorial de Salazar. O senhor tem duas alternativas: ou colabora, fazendo tudo o que lhe for ordenado, ou afasta-se e eu próprio assumo os comandos do avião".



Marcelino, que estava de costas, deu um salto, assustado. "Que é isto, o que é que os senhores querem?" "Pretendemos voar baixo sobre Lisboa, o Barreiro, Beja e Faro, e lançar panfletos. Depois, regressaremos a Tânger. Queremos fazer isto garantindo a segurança de todos".
"Mas eu não tenho combustível para isso", ripostou o comandante. "E é impossível abrir as janelas para lançar panfletos, por causa da pressão..." "Não? Então mostre-me o plano de voo".
Palma, com modos rápidos de conhecedor, analisou os documentos de voo e concluiu que havia combustível suficiente. E esclareceu logo o problema da pressão: "Descemos abaixo de 3 mil pés e fazemos a despressurização. Depois, podemos abrir sem perigo as escotilhas de emergência e lançar os papéis".
Marcelino declarou imediatamente que era dele a responsabilidade dos passageiros e que, portanto, obedeceria, sem abandonar os comandos.
Cá atrás, começava a servir-se o pequeno-almoço. Uma das hospedeiras, Pilar Blanco, queixou-se à colega mais velha, Maria Luísa Infante: "Estão uns homens no cockpit. Não me deixam entrar".
O comissário de bordo, Orloff Esteves, riu-se.
"O quê? Eu vou lá. Vai ver como me deixam entrar". E entrou, de facto. Mas não saiu mais.
Foi Amândio e Maria Helena, incumbidos das "relações públicas" da operação, quem explicou às hospedeiras o que se passava. Foi chamado o mecânico de bordo, António Coragem, para ir ao porão buscar as malas. Aos passageiros que se sentavam nas últimas filas foi pedido que, por motivos de serviço, se mudassem para lugares livres à frente. Fechada a cortina separadora, a área de trás do avião ficou reservada para as operações patrióticas.
Tudo começou a acontecer com incrível naturalidade. Camilo saiu do cockpit, sentou-se num dos lugares da frente e desabafou: "Foi fácil de mais! Assim não tem graça!" O comandante, depois de ter pedido aos piratas que não exibissem as armas em frente dos passageiros, mandou servir champanhe. Depois whisky. As hospedeiras andavam numa roda viva, aparentemente até divertidas. Luísa, ainda em estado de beatitude depois das emoções da noite anterior, em Casablanca, preocupou-se por um momento com a segurança do amante Marcelino, embora se esforçasse por o não dar a entender. Mas logo percebeu que estava entre gente correcta.
Já Pilar, que fazia o seu último voo, porque tinha casamento marcado e decidira deixar de trabalhar, a certa altura sentou-se cabisbaixa, e deixou cair uma lágrima pelo rosto moreno.
"Que tem a menina?", condoeu-se o garboso Amândio. "Por que chora?" "Eu tinha combinado com o Gil, que é o meu noivo, ir hoje ao cinema em Lisboa, à primeira matiné do Império".
Amândio sacou do lenço, limpou as lágrimas à donzela. "Não se apoquente. Dou-lhe a minha palavra de honra que, se não for à primeira, há-de ir à segunda matiné do Império com o Gil".



A seguir, foi a vez do comissário Orloff proporcionar a Amândio mais um daqueles momentos cinematográficos que ele adorava. "Fique bem claro que estamos a fazer tudo isto porque somos obrigados, pela força das armas!", declarou heroicamente a Amândio. Este não hesitou: lançou a pistola para rima de um dos bancos (um que estava mais próximo dele do que do comissário, pelo sim pelo não). "Bom, diga lá agora: colabora ou não?" Orloff não respondeu.
O comandante mandou abrir mais champanhe, distribuir flores, e os passageiros, surpreendidos com tanta prodigalidade, riam e cantavam, sem se aperceberem de nada, quando finalmente chegaram a Lisboa. Marcelino comunicou à torre de controlo que ia aterrar e aproximou-se da pista. No momento em que parecia que ia tocar o solo, Palma Inácio irritou-se. "Ai vai aterrar? Então ficamos todos aqui!", gritou, e lançou-se sobre os comandos, embora, no íntimo, nem por um segundo tencionasse fazer despenhar o avião. Era um verdadeiro dogma do grupo não pôr em perigo a vida de inocentes, nem que para isso tivessem de ser presos, ou mesmo sacrificados. "Os fins não justificam todos os meios", costumavam dizer Galvão e Camilo, nas suas (poucas) conversas teóricas.
Mas Marcelino percebeu a mensagem. Dirigiu-se de novo à torre; "Peço autorização para voar baixo sobre Lisboa".
Para sua surpresa, a resposta surgiu imediata: "Autorização concedida". Pensou: "Estão feitos uns com os outros, não há outra explicação.
Isto afinal é uma coisa séria". E passou a agir com mais prudência, "Remeteu" motores, começou a sobrevoar a cidade, desligou os altifalantes do cockpit e sussurrou ao microfone: "Informo que o avião está a ser assaltado. É uma operação política do Henrique Galvão. Querem lançar panfletos e regressar a Marrocos". Silêncio do outro lado. Depois: "Comandante, pode repetir, se faz favor?" E antes que pudesse recomeçar a falar, Marcelino ouviu, nos auscultadores, a voz bem conhecida do general da Força Aérea Costa Macedo, que andava nas imediações a voar num Dakota: "Não é preciso repetir. Já percebi tudo! Vou já comunicar com a Batina, para ver se mo apanham ".
A Batina, designação por que é conhecido o centro de radar militar de Montejunto, comunicou pouco depois: "Não vemos o avião". Ao que Costa Macedo respondeu: "Não? Então é porque já o abateram".
Marcelino, que ouviu tudo isto, compreendeu subitamente o que acontecera, e que mais tarde lhe foi confirmado por várias fontes fidedignas: quando o ministro da Guerra, Gomes de Araújo, foi informado do que se passava, perguntou quem era o comandante do aviáo desviado. Ao saber, cedendo a um desejo de vingança antigo, deu ordem para abater o avião.
Mal pensara isto, Marcelino vislumbrou os dois pares de aviões caças que tinham saído da base de Sáo Jacinto, com a missão de abater o Super-Constellation. Para não ser detectado pêlos radares e ficar fora do alcance dos caças, o comandante baixou a altitude até escassos 30 metros por cima dos prédios.
Os piratas rejubilaram. Feita a despressurização, começou o lançamento dos comunicados, com a ajuda mais que solícita do mecânico Coragem, que a certa altura disse mesmo: "Dê cá, que eu também quero lançar alguns!" Aliás, as próprias hospedeiras acabaram por ajudar no lançamento dos papéis, bem como alguns passageiros, já francamente bêbados, acreditando que estavam a deitar fora alguma papelada que já não era necessária.
Com as mudanças bruscas de altitude, João Martins sentiu-se mal e foi à casa de banho vomitar. Pouco depois, Maria Luísa saía de lá aos gritos: "Quem foi o porco que sujou a sanita? Vá lá limpar imediatamente!" E o bom Martins lá foi, guardanapo numa mão, pistola na outra.
Estava um dia luminoso em Lisboa, cheio de sol e vento, e os panfletos voaram por todo o lado, espalharam-se pela Avenida da Liberdade, pousaram nos cafés do Terreiro do Paço, entraram pelas janelas abertas do Ministério do Interior.
"Agora, vamos ali à malta fixe do Barreiro", ordenou Palma Inácio. "Agora vamos à malta fixe de Beja". Voaram, "a rapar o solo" sobre o Alentejo e o Algarve. Martins, ao ver a sua terra-natal, chorou. E continuaram para Sul. No mar, ao largo de Faro, estavam dois navios de guerra que tomaram posições, alinhados com o avião.
Marcelino convenceu-se de que era o alvo e desceu ainda mais, passando rente ao mar entre as duas corvetas. Para seu espanto, os militares a bordo disseram adeus, sorridentes. Estavam ali, confirmou-se mais tarde, à espera da operação marítima de Henrique Galvão...



A chegada a Tânger registou-se precisamente ao meio-dia menos 10, como previsto. Galvão esperava os seus homens no aeroporto, as autoridades estavam avisadas.
O avião regressou horas depois a Lisboa e os operacionais foram todos presos. Após algumas andanças pouco agradáveis em Marrocos foram mandados para Dacar, precisamente no dia da declaração da independência do Senegal. Galvão, apresentado como um famoso anti-fascista e anti-colonialista português, ainda fez um discurso às massas, antes de as autoridades senegalesas terem enfiado o grupo à força num avião com destino à Argentina. A entrada, Camilo pôs-se aos gritos de que, mal levantassem voo, desviaria o avião. O comandante mandou dizer que não transportava tão difíceis passageiros, e, pouco depois, estavam de regresso ao Brasil, prontos para outra operação, Em Portugal, foram todos julgados à revelia e condenados a penas entre os 15 e 20 anos, ajuntar às que já tinham O comandante Marcelino, que não foi capaz de explicar satisfatoriamente por que razão tinha alterado o voo de Casablanca, foi interrogado inúmeras vezes pela Pide e ficou suspenso das suas funções.
Um mês depois, recebe um telefonema do aeroporto, às 2h00 da manhã. "Comandante Marcelino, tem um voo para fazer agora, para Goa", disseram. Acrescentaram que a ordem de suspensão tinha acabado de ser levantada e Marcelino foi à pressa para o aeroporto. De tão radiante por recomeçar a trabalhar, nem estranhou que o voo, àquela hora, fosse repleto de passageiros e com a carga máxima.
Já nas proximidades da Índia, foi um controlador aéreo paquistanês quem o informou: "O quê? Vai para Goa? Você está louco? Goa acaba de ser tomada pelo Nehru. Já chegaram aqui, ao aeroporto de Carachi, dois aviões crivados de balas." Marcelino começou, com todas as cautelas, a explicar aos passageiros por que razão teriam de aterrar em Carachi... mas um deles dirigiu-se ao cockpit: "Sr. comandante, não perca o seu tempo. Sabemos o que se passa. Somos todos militares à civil, o avião vai carregado de armamento".
Sabendo da iminente invasão de Goa, o Governo português decidira enviar, à última hora, soldados e armas para defender a colónia. E quem melhor para pilotar o avião-suicida, pensou o ministro da Guerra, do que o comandante Marcelino? Hoje, é casado com Maria Luísa, tem três netos.»

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