07 março 2009

Sem comentários


Lê-se e não se acredita. "Neste processador podes escrever o texto que quiseres, gravar-lo e continuar-lo mais tarde", lê-se nas instruções do processador de texto - isso mesmo: "gravar-lo e continuar-lo". "Dirije o guindaste e copía o modelo", explicam as instruções de um puzzle - "dirije" com "j" e "copía" com acento no "i". "Quando acabas-te, carrega no botão OK" - "acabas-te", em vez de "acabaste". Tudo isto se pode ler nas instruções dos jogos que vêm instalados de origem no computador "Magalhães", o orgulho do Governo de Sócrates.
Se tem em casa um "Magalhães", confirme: ao iniciar o computador, escolha o ambiente de trabalho Linux (Caixa Mágica 12 Mag). No menu, vá aos jogos - por ironia, estão no ícone "Aprender". Em cada jogo, leia as instruções (o ícone é um ponto de interrogação). Foi isso que fez esta semana o deputado José Paulo Carvalho - o que descobriu deixou-o perplexo.
Os erros são às dezenas (o Expresso encontrou mais de 80, e a certa altura deixámos de contabilizar erros repetidos) e para todos os gostos. Há gralhas evidentes ("attentamente") e erros imperdoáveis. "Encontra-las" e "encontras-te", em vez de "encontra-as" e "encontraste"; "contar-los" em vez de "contá-los"; "caêm" em vez de "caem"; "contéem" em vez de "contêm"; ou ainda a incrível conjugação do verbo fazer - "fês" em vez de "fez". Num jogo somos instruídos a mover "um disco de cada vês", noutro devemos "carregar outra vês no chapéu" (no "Magalhães", "vez" tem relação com o verbo ver). No xadrez, a vez das peças brancas é o "torno dos brancos".
Ao pé destes casos, é quase pecado venial o desprezo por vírgulas e acentos. Há acentos que faltam ("historia", "sitio", "agua"...), outros estão onde não deviam (sobretudo nos advérbios de modo: "básicamente", "fácilmente"), há acentos graves onde deviam ser agudos ("á direita", "ás actividades").
Numa língua aparentada com o português, encontramos frases como esta: "O objectivo do quebra-cabeças é de entrar cifres entre 1 e 9 em cada quadrado da grelha" (nas instruções do sudoku). Ou esta, na explicação do tangram, um quebra-cabeças chinês: "Quando o tangram for dito frequentemente ser antigo, sua existência foi somente verificada em 1800". E ainda esta pérola: "Carrega em qualquer elemento que tem uma zona livre ao lado dele, ele vai ir para ela."
Este português macarrónico está nos computadores pessoais que já foram entregues a mais de 200 mil crianças do primeiro ciclo (ainda estão 150 mil à espera) e até foram oferecidos por Sócrates aos chefes de Estado e de Governo dos 22 países presentes na última cimeira ibero-americana. A 23 de Setembro, ao entregar os primeiros "Magalhães", Sócrates não escondia o orgulho: "O dever de um Governo é proporcionar uma boa educação. Foi por isso que avançámos com este projecto".
O deputado José Paulo Carvalho denuncia estes "erros grosseiros de ortografia, gramática e sintaxe" num requerimento que entregou ontem na Assembleia da República. No documento, a que o Expresso teve acesso, o ex-parlamentar do CDS (actualmente deputado não inscrito) questiona Maria de Lurdes Rodrigues sobre o que chama o "novo idioma oficioso do Ministério da Educação (ME): o 'magalhanês'".
(...)
O tradutor da versão portuguesa do software tem quase as mesmas habilitações que as crianças que utilizam o Magalhães: José Jorge tem a 4ª classe e vive em França desde os 10 anos. "O problema da tradução é que nenhum português de Portugal se dedicou a ela", lamenta o emigrante. José Jorge diz que "ninguém até hoje" reviu a versão que ele criou. O software educativo da GCompris está disponível na net e pode ser actualizado por qualquer cibernauta.


Fonte: Expresso

4 comentários:

  1. "...o artigo e reportagem da SIC refere o tradutor, José Jorge, como tendo a 4ª classe (“Tradutor tem a 4ª classe”). O tradutor, José Jorge, tem uma licenciatura em Filosofia e uma segunda licenciatura em Informática trabalhando neste momento nas Tecnologias de Informação. O Gcompris é uma excelente aplicação e o responsável pela tradução tem o mérito de ser o driver da tradução portuguesa." - Blog não-oficial da equipa de desenvolvimento Caixa Mágica.

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  2. Diz a empresa: "O processo de tradução/localização de software envolve um passo de tradução automática, sendo esse passo seguido de verificação manual."
    De que servem as licenciaturas se não fazem aquilo para que lhes pagam: ler, editar?

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  3. Com certeza, mas convém esclarecer alguns pontos:

    - o software em questão é open source (software livre) sendo que a sua filosofia não passa pela mesma do software proprietário (Microsoft, por exemplo, que é a única responsável pela tradução dos seus productos). Isto é, não é pago e qualquer pessoa pode editá-lo e/ou modificá-lo sem ser remunerada para o efeito, como foi o caso da tradução efectuada há sete anos atrás pelo português que emigrou para a França em miúdo e com apenas a 4ª classe e lá prosseguiu os seus estudos. O seu português não era o melhor quando fez a tradução, mas pelo menos fez uma coisa que não é muito comum
    verificar-se nos nossos emigrantes de longa data no estrangeiro: colaborar no desenvolvimento de uma aplicação para a sua língua materna. Basicamente é este o espírito da comunidade open source em todo o mundo.

    - a responsabilidade da verificação da tradução para português do software em questão, antes de implementá-lo no Magalhães, era apenas e só da Caixa Mágica e estes já assumiram o lapso.

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