"Esta ânsia de em tudo encontrar um especialista, um estudioso, um jovem especializado nisto e naquilo e naqueloutro. Esta ânsia de antecipar o nome, de o classificar, de lhe outorgar um título. Vivemos nesta ânsia e desta ânsia ninguém nos tira. Mesmo quando, respeitosamente, pedimos que nos tratem apenas por aquilo que mais somos: pessoas, leitores, seres humanos defeituosamente colocados num mundo defeituoso. Mesmo quando, encarecidamente, pedimos que nos chamem apenas pela humana condição de estarmos vivos e de, por isso, sofrermos. Porque esta ânsia de em tudo vislumbrar um doutor, um estudioso, um especialista, um senhor professor, é a ânsia de nem sequer sabermos copiar uma frase, de nem sequer sabermos discernir o talento do trabalho, de nem sequer sabermos que deveríamos, pelo menos, saber qualquer coisa antes de nos reduzirmos ao trato. Constatar que tanta gente ainda vive nesta ânsia deixa-me ansioso, a pensar no que seria de mim se não fossem coisas tão simples como estar agora aqui a declarar que considero o meu país uma região inóspita, um lugar cada vez mais inabitável, sufocante, estupidamente provincial, passe a redundância, no modo como trata, promove, elogia e paga a fatal ignorância dos pobres de espírito. Não entendo, não consigo entender, cada vez mais tenho dificuldades em aceitar esta ânsia. E penso noutros que, muito antes de mim, se viram assim atirados para a poça lamacenta do desrespeito. Pois trata-se, no mínimo, do mais elementar respeito. Mas que esperar de um país aparente, de um país engravatado, de um país que cultiva a superficialidade a ponto de tratar um vulgar leitor por especialista e estudioso? Juro que a culpa não é minha. Nada fiz para merecer o título. Antes pelo contrário, tudo fiz para que ficasse bem esclarecido, no limite, que não passo de um vulgar desempregado que, por essa involuntária condição, tem tempo para ler e para escrever e para matar moscas. Devia haver quem nos pagasse tal actividade tão ecológica. Devia haver quem pagasse o desemprego, sempre estamos a contribuir para a protecção do ambiente evitando o consumo de insecticidas. Vou especializar-me no assunto, vou estudá-lo profundamente, para que no futuro possa merecer, então, essa condição de estudioso de alguma coisa, de especialista em alguma coisa. Nem que seja em matar moscas."
11 abril 2008
Viver em Portugal: Take 1
Transcrevemos com a devida vénia um post daqui. Obrigado HMBF.
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